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Recentemente a Vogue Britânica, lançou uma matéria um tanto quanto polemica: “Is Having a Boyfriend Embarrassing Now?” (Ter Um Namorado é Constrangedor Hoje em Dia?), não é um mero capricho geracional; é um sintoma da tensão estrutural entre o ideal de autonomia e a vulnerabilidade do vínculo. Por que o namorado, o parceiro amoroso, se tornou, em certos círculos, um peso ou até mesmo um segredo a ser escondido?
Na era da performance digital, a solteirice é facilmente performada como liberdade, empoderamento e sucesso. O eu solteiro, ambicioso e independente brilha. Em contraste, o relacionamento amoroso, especialmente o heterossexual tradicional, é visto como um risco de retrocesso, de perda de identidade e de abdicação de sonhos. Nossa matéria semanal propõe-se, como especialistas em Psicanálise, a ir além da superfície da timeline e mergulhar nas pulsões que movem esse novo constrangimento.
Um exemplo desse momento que vivemos, principalmente nas redes sociais são as fotos cada vez menos mostradas… copos, taças, mãos, cada vez menos queremos mostrar o outro ao mundo.
Será um modo de se preservar? Alguns falam: “se acabar pelo menos não preciso apagar as fotos”, outros: “O que ninguém sabe, ninguém estraga.”
Mas qual a verdade por trás dessa nova tendência?
O Olhar Psicanalítico: O Peso da “Falta” no Mundo Narcísico
- A Tirania do “Eu Pleno” (O Ideal Narcísico)
A Psicanálise nos ensina que o narcisismo é fundamental para a constituição do eu. No entanto, vivemos em uma cultura que estimula um narcisismo patológico (ou social) incessante, onde a imagem do indivíduo deve ser a de um “Eu Pleno”, sem falhas, sem necessidades, e sobretudo, sem dependência.
O que o vínculo amoroso representa? Ele, inevitavelmente, convoca a Falta.
Ao se ligar a um Outro, a mulher (ou o indivíduo) assume sua dependência inerente e sua vulnerabilidade e essa admissão de que “eu preciso do Outro para me completar/para amar” é um ataque direto ao ideal de autossuficiência imposto pela cultura pop do girlboss (mulher lider, independente, autosuficiente) ou do self-made.
Dessa forma, o namorado, torna-se constrangedor porque ele é a prova viva de que a pessoa não é totalmente autossuficiente e plena, ameaçando a performance de “Eu Livre” que é tão valorizada nas redes.
- A Crise da Função Paterna e a Desconfiança do Parceiro
A matéria da Vogue aponta para a “crise da masculinidade” – a percepção de que muitos homens não evoluíram para se tornar parceiros em pé de igualdade. Para a Psicanálise, isso ressoa com a crise da Função Paterna na sociedade.
A Função Paterna (que não se refere apenas ao pai biológico, mas à lei e à interdição cultural) é o que, simbolicamente, oferece um marco de estabilidade e introduz o indivíduo na cultura. Quando essa função (ou modelo) está em crise:
A mulher pode se ver na posição de “mãe” do parceiro, tendo que educar, organizar e carregar o peso emocional da relação – o oposto do que se espera de um parceiro adulto.
O parceiro não é visto como objeto de desejo ou parceiro de travessia, mas sim como mais um filho ou, pior, um obstáculo à sua ambição.
E por fim, ainda precisa lidar com a desconfiança que se instala: o que o namorado trará além de trabalho e frustração? O vínculo, em vez de ser um refúgio para dividir bons momentos, acaba se tornando uma fonte de ansiedade e um fardo.
- O Medo da “Terra do Namorado” (Boyfriend Land)
O termo “Boyfriend Land” é a forma contemporânea de nomear o medo de ser reduzida ao papel. Antigamente, a mulher era definida como “esposa de…” ou “mãe de…”. O constrangimento de hoje reflete o medo de que o vínculo absorva a identidade individual que foi duramente conquistada.
Psicanaliticamente, essa é a agressividade natural do vínculo: o amor sempre implica uma dialética entre união e separação. O medo é que a união seja tão forte que dissolva a individualidade, regredindo a mulher àquele lugar socialmente imposto que o feminismo tanto se esforçou para desmantelar.
Uma Possível Solução: Um Novo Contrato Amoroso
A solução não é abolir o amor, mas sim resgatar o sentido profundo do vínculo em um mundo que valoriza apenas a superfície e a performance.
O objetivo não é buscar um parceiro que preencha a sua falta (o que é impossível), mas sim um Outro que possa sustentar a sua falta, e ser sustentado na sua.
Reconhecer a Falta: O amor maduro começa quando admitimos que somos seres faltantes. Ter um parceiro não é constrangedor; a falta que ele expõe é que é. É preciso coragem para sustentar que sim, somos seres de desejo e precisamos de um do outro, como já dizia o ditado: “Sozinho chegamos mais rápido, mas juntos chegamos mais longe”.
O Vínculo como Plataforma de Lançamento: A nova parceria deve ser um contrato de expansão, não de limitação. O casal não deve ser um refúgio do mundo, mas uma plataforma a partir da qual ambos os indivíduos se sentem mais fortes, seguros e inspirados para ir ao mundo.
A “Tradução” do Amor: O amor verdadeiro não é a ausência de individualidade, mas a capacidade de amar a diferença do Outro sem perder a sua própria.
A verdadeira libertação não está em esconder o amor para parecer livre, mas em viver o amor de forma autêntica – reconhecendo sua vulnerabilidade e, ainda assim, escolhendo o vínculo como um caminho de crescimento mútuo. O constrangimento se dissolve quando a mulher entende que a força da sua autonomia reside, paradoxalmente, na coragem de amar e ser amada sem medo de parecer “menos”.
Encerro a matéria dessa semana com uma adaptação ao poema de Carlos Drummond de Andrade: Amar:
“É preciso amar, um amor de repente, mas um amor profundo, que a vida se torna um eterno ir e vir, onde a paixão é a única direção.
(…)
É preciso amar… e ver que tudo que acontece, faz parte do grande amor, de que se precisa.“
Carlos Drummond de Andrade
