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Jornalismo, Engenharia e Liderança: A visão de um dos apresentadores mais experientes do rádio e TV, ex-professor universitário e ex-Presidente do Conselho do SFC. Fatos sob todas as perspectivas.
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A pessoa mais solidária que eu conheci na vida teve Alzheimer. Viveu na ausência absoluta por muitos anos, entre cuidadoras e cadeiras de rodas.

Lembro claramente do aperto que eu sentia no coração nos muitos encontros casuais, na rua, em que ela, que sempre me tratou como um filho, não mais me reconhecia.

Nesta semana, revivi essa tristeza. Estava levando o Bartolomeu, buldogue francês da minha filha, para o banho num pet shop. Ele teve um iniciozinho de treta com uma cadela pequena que vinha na direção contrária. E a médica, de braço dado com a filha, que passeava com essa cadela, me olhou com aquela mesma expressão ausente. Ela me conhece. Mas não me reconheceu.

Encontrei outras pessoas conhecidas no curto trajeto que fiz com o Bartô entre a casa dele e o banho. O monitor da academia em que eu treino, Társio, vinha numa bicicleta e cornetou o treinador do Santos pelas muitas folgas e poucos treinos antes da estreia, neste final de semana, no Campeonato Brasileiro. O ex-presidente do clube que eu frequento, Badá, passou de carro e gritou, rindo, que já encomendou pra mim um guarda-chuva que ele NÃO me deve, história que já tem dois anos. O Alexandre, zelador de um prédio que fica no caminho, me garantiu que neste ano a Libertadores é do Flamengo.

Tem pulsação, tem vida na cornetagem do santista, na zoação do pseudo-devedor de guarda-chuva, na confiança do flamenguista. Vida, pulsação que o Alzheimer exterminou na médica e na mulher solidária do início deste texto.

Por que tanta tristeza? Essa ausência em vida machuca muito. Machuca por muito tempo. A morte se apresenta como um alívio.

Fiquei com essa reflexão na volta, depois de entregar o buldogue na mão do cuidador. Não aprovo a eutanásia. Acho que cada ser vivo – e isso vale para o humano mas também para os bichos – deve cumprir até o final sua existência na Terra. Se for com sofrimento, também. Não se deve nem abreviar uma vida, eu penso, mesmo vegetativa, nem prolongar essa vida com aparelhos. O sofrimento e a morte fazem parte do combo que o universo nos oferece.

Aí penso na justiça. Por que aquela mulher de coração que transbordava solidariedade? Não seria muito injusto? Quem acredita em Deus, acredita, por efeito colateral, na justiça: Deus é infinitamente justo. Então todo sofrimento tem uma causa justa. E aí vem a lógica inflexível de Allan Kardec: se essa causa não é dessa vida, então é de uma vida anterior.
Fico com essa reflexão.

Uma longa reflexão num trajeto curto… E a percepção dessa frase leva minha memória entristecida, como uma defesa, a lembrar de dois sucessos musicais da longínqua e dourada década de 60: Cabelos longos e idéias curtas, do francês Johnny Halliday, e Reflections of My Life, da banda Marmalade, da Escócia.

As lembranças, doces como a dessas músicas ou amargas como a dos seres queridos levados pelo Alzheimer, têm pulsação, têm vida. Fazem parte do combo que o universo nos oferece.

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