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Moradores do Conjunto Habitacional Abelardo Rocha, no bairro Mondubim, em Fortaleza, estão sendo obrigados a abandonar suas casas após ameaças diretas do Comando Vermelho (CV). Frases pichadas em muros ordenam a saída imediata das famílias, sob risco de morte, em um claro recado do crime organizado que transformou o cotidiano da comunidade em medo e silêncio.
A situação no Abelardo Rocha não é isolada. Viaturas da Polícia Militar circulam com mais frequência na região, e inquéritos foram abertos para investigar os responsáveis. Ainda assim, o clima de insegurança persiste e a saída forçada de famílias expõe a fragilidade do Estado diante do avanço das facções.
Um problema que não começou agora
Os casos de expulsão de moradores por facções criminosas em Fortaleza vêm sendo noticiados há anos. Em 2016, durante o período em que havia um pacto entre o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), a capital cearense chegou a registrar uma queda significativa nos homicídios. Mas, com a ruptura desse acordo no final daquele ano, a violência voltou a crescer.
Em 2018, uma reportagem do El País já relatava famílias sendo forçadas a deixar suas casas em diversos bairros da periferia da capital. A matéria descrevia um cenário de “cidade sitiada”, com ônibus incendiados, prédios públicos atacados e comunidades inteiras submetidas ao domínio de facções. Desde então, a rotina de expulsões, intimidações e mortes só se intensificou.
No mesmo período, investigações revelaram que diferentes facções disputavam território no Estado: o PCC, de São Paulo; o CV, do Rio de Janeiro; a Família do Norte (FDN), do Amazonas; e a facção local Guardiões do Estado (GDE), que se tornou uma das principais forças em Fortaleza.
Mudança de domínio
O Abelardo Rocha é um retrato dessa guerra territorial. Relatos de moradores apontam que a área antes era controlada pela GDE, mas foi tomada pelo CV, que impôs novas regras e iniciou a expulsão de famílias associadas ao grupo rival. Pichações nos portões e muros reforçam a ordem: sair ou morrer.
Esse tipo de intimidação não se restringe ao Mondubim. Em outras regiões, como no Conjunto Palmeiras e no Maria Tomásia, moradores também foram obrigados a abandonar imóveis do programa Minha Casa, Minha Vida. O motivo, segundo autoridades, muitas vezes é o simples fato de a família ter vindo de um bairro dominado por facção rival.
As estatísticas da violência
O contraste com os números de 2017 e 2018 é evidente: naquele período, o Ceará registrava 5.133 homicídios em um único ano e Fortaleza figurava entre as regiões mais violentas do mundo. Nos últimos anos, houve reduções parciais, com a capital fechando 2023 com 738 mortes violentas — uma queda em relação ao ano anterior — e o estado contabilizando 1.558 assassinatos entre julho e dezembro de 2024, ligeiramente abaixo do mesmo período de 2023. Já no primeiro semestre de 2025, houve nova retração de 16,6% nos crimes violentos letais. Mas, apesar desses números indicarem quedas estatísticas, a realidade segue alarmante: facções continuam expulsando moradores, pichando muros e impondo suas próprias regras em comunidades inteiras, mostrando que a violência segue presente e ameaçadora.
O crime também passou a ditar regras de circulação, impor toques de recolher e até interferir na rotina escolar de crianças, obrigando famílias a mudar os filhos de colégio para não cruzar territórios inimigos.
O que faz a administração pública
Diante desse cenário, o governo estadual tem reforçado o policiamento em áreas conflagradas, instalado bases fixas e anunciado projetos sociais como forma de prevenção. Em 2018, foi inaugurado o Centro Integrado de Inteligência para o Combate ao Crime Organizado, prometido como instrumento para unificar informações e investigações em todo o Nordeste.
Ainda assim, o alcance dessas medidas é questionado. Moradores continuam deixando suas casas, como no caso atual do Abelardo Rocha, e muitas famílias já perderam não apenas o direito de permanecer em seus lares, mas também a sensação mínima de segurança.
O exemplo do conjunto habitacional mostra que a violência das facções não é um episódio pontual: é o retrato de uma guerra que se estende há anos e que, apesar das ações de polícia e governo, ainda dita as regras do dia a dia em Fortaleza.