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“E a partir do momento em que o juiz se faz mais severo do que a lei, ele se torna injusto, pois aumenta um novo castigo ao que já está prefixado.”
Foi com essa frase que o ministro Luiz Fux marcou um dos momentos mais emblemáticos do julgamento da trama golpista no Supremo Tribunal Federal. É pouco provável que o seu voto mude o destino de Jair Bolsonaro e dos outros réus acusados de tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio público. Porém, sua fala abriu portas para novos caminhos da defesa, animou a base aliada de Bolsonaro e, por incrível que pareça, cobra também uma mudança de postura do próprio STF.
Um voto histórico de mais de 13 horas
O julgamento ganhou contornos históricos no dia 10 de setembro de 2025, quando Fux apresentou um voto que durou quase 14 horas ininterruptas, iniciadas por volta das 9h da manhã e concluídas perto das 23h, com apenas duas pausas regimentais — uma para o almoço e outra para um lanche rápido no meio da tarde. O documento que embasou a leitura tinha 429 páginas, e foi acompanhado de perto por juristas, políticos e analistas.
Mesmo longo, cada trecho foi observado “letra por letra”, dado o peso histórico de suas conclusões. Não era apenas um voto: era uma verdadeira exposição sobre os limites do Supremo e sobre a necessidade de respeitar o devido processo legal em um dos casos mais sensíveis da história recente.
“O Supremo é incompetente para julgar esta ação”
Logo no início, Fux cravou a frase que virou manchete: “Concluo, assim, pela incompetência absoluta do Supremo Tribunal Federal para o julgamento deste processo, na medida em que os denunciados já haviam perdido os seus cargos.”
Ele explicou que não se tratava de uma escolha política, mas de uma questão clara de regra: quando alguém perde o cargo que dava direito a foro privilegiado, deve ser julgado pela Justiça comum, e não pelo STF. Nas palavras dele: “A incompetência, que era ratione persona, não se prorroga, porque não é relativa, é absoluta e funcional. Não podemos ir ao mérito para depois voltar à preliminar.”
STF já fez isso antes
Para reforçar seu argumento, Fux lembrou que o próprio Supremo já havia tomado decisões semelhantes: “Supremo Tribunal Federal já anulou um processo por inteiro, por incompetência relativa máxima. Quando se trata de incompetência absoluta, [esta é] interrogável pela vontade das partes.”
Ou seja, se o tribunal já anulou um processo inteiro em uma situação menos grave, neste caso — que, segundo ele, é de incompetência absoluta — não poderia agir de forma diferente.
O “tsunami de dados”
Outro momento marcante foi quando o ministro criticou a forma como as provas foram entregues às defesas. Segundo ele, os advogados receberam um “tsunami de dados”, com mais de 70 terabytes de informações, mas sem organização mínima: sem índices, sem nomeação adequada, sem tempo hábil para análise.
“Foi nesse contexto que as defesas alegaram cerceamento de defesa, em razão dessa disponibilidade tardia que apelidei de um ‘tsunami de dados’.”
Fux declarou ainda: “Reconheço a ocorrência de cerceamento e, por consequência, declaro a nulidade do processo desde o recebimento da denúncia.”
A comparação com o Mensalão
O ministro também comparou o processo da trama golpista ao julgamento do Mensalão, um dos mais emblemáticos da história do Supremo. Ele destacou que, naquela ocasião, a instrução do processo levou dois anos para ser concluída, e o julgamento inteiro se estendeu por cinco anos.
No caso atual, disse Fux, a investigação e o julgamento aconteceram em tempo muito mais curto, apesar do volume recorde de provas. Para ele, essa disparidade revela a pressa com que o caso foi conduzido, em contraste com a complexidade que deveria exigir uma análise minuciosa e demorada.
Contra a pressa e a dureza além da lei
O ministro também criticou a velocidade com que o processo foi conduzido. Para ele, julgamentos dessa importância não podem ser feitos no atropelo: “Não é razoável exigir da defesa que, em tão pouco tempo, responda a um volume dessa magnitude.”
E deixou um alerta contra condenações guiadas pelo calor do momento: “Juiz se faz mais severo do que a lei.” A frase foi recebida como um recado de que não cabe ao magistrado endurecer penas ou acelerar processos por pressão externa.
Provas e absolvições
Na parte final, Fux retomou o princípio central do direito penal: a necessidade de certeza. “É preciso condenar quando houver certeza e, o mais importante, ter humildade para absolver quando houver dúvida.”
Com esse entendimento, ele absolveu Jair Bolsonaro e outros seis réus por falta de provas inequívocas. Apenas Mauro Cid e Braga Netto receberam condenações parciais, em pontos específicos ligados à tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Um recado para o STF
- O voto de Luiz Fux entrou para a história porque:
- questionou a competência do STF para julgar o caso;
- expôs falhas graves de cerceamento de defesa;
- reforçou a necessidade de provas sólidas para qualquer condenação.
Ao final de quase 14 horas, Fux deixou um recado claro: “Não compete ao STF realizar um juízo político do que é bom ou ruim, conveniente ou inconveniente.”
Um voto longo, detalhado e firme, que não apenas julgou réus, mas também colocou em debate os limites do próprio Supremo Tribunal Federal.